Extensão de competência: arbitragem e produção autônoma de provas

O direito autônomo à prova no CPC/2015
Antes da entrada em vigor do CPC/2015, a prova era uma importante etapa no exercício da função jurisdicional, como meio e não um fim em si mesma. Ou seja, a antecipação da prova no direito brasileiro era mero instrumento acautelatório, com o propósito de se resguardar e conservar a plena eficácia da prova a ser utilizada no processo principal.
Uma das grandes inovações do CPC/2015 diz respeito à “(…) admissão expressa do legislador de que a prova não se destina exclusivamente ao juiz, mas presta-se, igualmente, à formação do convencimento das partes quanto às chances de sucesso ou insucesso em uma eventual demanda, ou mesmo para viabilizar a solução extrajudicial dos conflitos” [1].
Ou seja, com o novo CPC, a prova deixou de ser uma simples etapa no exercício da função jurisdicional, para ser alçada à categoria de um direito autônomo, quando o conflito a ser solucionado se estabelece em torno da própria prova.
Neste sentido, o CPC/2015, no artigo 381, previu a produção antecipada de prova em duas novas hipóteses. No inciso II, a prova a ser produzida é suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito. Já no inciso III, nas situações em que o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação.
Em ambas estas hipóteses, o legislador dispensou o requisito de urgência, indispensável no regime do antigo Código de Processo Civil de 1973, para viabilizar a produção antecipada de prova, pois reconheceu que em algumas situações sua finalidade será meramente aclaratória.
E será nestas duas novas situações que o artigo irá focar, para trazer algumas considerações sobre a possibilidade de ajuizar ação probatória como exercício do direito autônomo à prova perante o Juízo estatal, em contrato que possui cláusula arbitral.
Arbitragem e produção autônoma de provas
Via de regra, a opção das partes pela solução de seus conflitos perante o Tribunal Arbitral afasta a competência do Poder Judiciário para sobre eles se pronunciar.
Entretanto, nos termos dos artigos 19 e 22-A da Lei 9.307/1996 – Lei de Arbitragem, nos casos de medidas urgentes, a escolha da arbitragem não é incompatível com a possibilidade das partes se socorrerem ao Poder Judiciário.
Desta forma, quando se está diante da produção antecipada de prova enquanto tutela de urgência, não há dúvidas da possibilidade do ajuizamento do pedido perante o judiciário, quando o tribunal arbitral ainda não estiver instaurado.
Ocorre que, como visto, não é sempre que a produção antecipada de provas se reveste do caráter de urgência. Nestes casos, estariam as partes autorizadas a pleitear a medida perante o Poder Judiciário?
Nos termos da Lei de Arbitragem e conforme o entendimento da maioria da doutrina, a regra é que as medidas probatórias não revestidas do caráter de urgência estão abrangidas pela convenção de arbitragem. Em outras palavras, se não há risco de que a obtenção da prova fique comprometida posteriormente, é necessário que primeiro seja instalado o Tribunal Arbitral para só então, se pleitear as medidas probatórias aos próprios árbitros.
Não obstante, uma vez que o CPC/2015 reconheceu que a função primordial do processo é solucionar conflitos e promover a pacificação social, alguns doutrinadores vêm entendendo que em determinadas situações excepcionais e enquanto não instalado o Tribunal Arbitral, é possível requerer a produção da prova em caráter antecipatório perante o Poder Judiciário, mesmo sem o requisito de urgência.
Eduardo Talamini[2] identifica três hipóteses em que se deve admitir a extensão da competência do Poder Judiciário às providências probatórias sem o caráter de urgência, enquanto não instalado o Tribunal Arbitral.
A primeira é verificada quando a produção probatória é que irá definir os contornos da pretensão da parte, permitindo até mesmo verificar se ela está abrangida pela convenção arbitral.
Também, nos casos em que já se sabe de antemão que haverá recusa da outra parte ao acesso à prova, sendo necessárias medidas coercitivas preliminares, cuja competência é exclusiva do juiz.
Como terceira hipótese, quando a produção da prova é de baixa complexidade e de curta duração, por exemplo, apresentação de documentos, de modo que exigir a instalação do Tribunal Arbitral, com todos os custos a ele inerentes se demonstra desarrazoado.
Apesar de ainda incipiente, a jurisprudência vem, em casos isolados e muito específicos, permitindo a produção antecipada de provas sem o requisito de urgência perante o Poder Judiciário, mesmo que as partes tenham optado pela solução dos conflitos perante a arbitragem.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento do recurso de apelação nº 1093560-14.2016.8.26.0100, entendeu possível a produção antecipada de prova sem o requisito de urgência, como medida preparatória do procedimento arbitral perante o Poder Judiciário, por entender que a medida tinha por finalidade estabelecer um ambiente adequado para a instauração do juízo arbitral.
E apesar de aproximar a produção probatória autônoma das medidas cautelares, o fundamento relevante da decisão do Tribunal foi justamente permitir a delimitação pela parte dos contornos da pretensão e, com base na conclusão, decidir pelo início do procedimento arbitral.
Conclusão
O direito autônomo à prova é uma realidade no direito brasileiro moderno e é um importante elemento de pacificação social e de racionalização da prestação jurisdicional. A possibilidade da utilização da produção autônoma de provas enquanto fim, está adequada à otimização e eficiência processual.
Fundamentada nestas premissas, verifica-se hoje uma tendência, na doutrina e na jurisprudência, de se permitir a extensão da competência pré-arbitral às providências probatórias não urgentes, em situações excepcionais, quando a finalidade da prova seja delimitar os contornos da pretensão e verificar sua subsunção à arbitragem; quando houver dificuldade ou recusa concreta de acesso à prova; e quando a prova a ser produzida for de baixa complexidade e pequena duração.
Os defensores desta flexibilização da competência arbitral firmam seu entendimento no fato de que o juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou inocorrência do fato e nem sobre suas consequências jurídicas, de modo que a competência do Juízo Arbitral estará preservada.
Por outro lado, aqueles que defendem a impossibilidade de produção autônoma de provas sem o requisito de urgência perante o Poder Judiciário, quando as partes optaram por submeter seus conflitos à arbitragem, sustentam seu entendimento no fato de que a Lei 9.307/96 prevê de forma restrita e taxativa as hipóteses de cooperação entre juízes e árbitros e a produção antecipada de provas perante o Poder Judiciário sem o perigo de dano não é uma delas.
No nosso entendimento, a evolução do direito à prova e do processo enquanto mecanismo de pacificação social, acabarão por consolidar a posição minoritária de se permitir a produção autônoma de provas sem o requisito de urgência perante o Poder Judiciário, mesmo existindo no contrato cláusula arbitral ou compromissória, em situações excepcionais como as já enumeradas.
Apesar disto, uma vez que inexistem critérios objetivos para definir as hipóteses em que a produção autônoma de prova perante o Poder Judiciário seria cabível, será necessário cautela dos Juízes e Tribunais na análise destas situações, sob pena de fazer da regra geral da Lei 9.307/96, letra morta.
Qualquer que seja a hipótese, contudo, uma vez instalado o tribunal arbitral, a competência para decidir sobre as provas é exclusiva dele.
Bibliografia
CALDAS, Adriano e JOBIM, Marcos Felix. Direito Probatório. 2a. ed. rev. atual. Salvador: JusPodivm. P. 553.
TALAMINI, Eduardo. Produção antecipada de prova no Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo, vol. 260, out. 2016, p. 75-101.
MAZZOLA, Marcelo e TORRES, Rodrigo. A produção antecipada de prova no Judiciário viola o juízo arbitral e a competência do árbitro? Disponível em https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI269294,11049-A+producao+antecipada+de+prova+no+Judiciario+viola+o+juizo+arbitral+e. Acesso em 14/11/2019.
Por Flávia de Faria Horta Pluchino, advogada, sócia do escritório Rodrigo Elian Sanchez Advogados e especialista em Direito de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-SP).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24 de março de 2023, 19h22
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