Comunidade deve preservar o instituto da arbitragem, em permanente ataque

Uma das funções mais relevantes do STF (Supremo Tribunal Federal) no contexto do necessário equilíbrio entre os três Poderes da República é o de verificar a conformidade das leis com a Constituição. E é por meio do controle concentrado que a Corte constitucional pode declarar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade de normas e o descumprimento de preceito fundamental previsto na Carta de 1988 e a omissão na criação de norma que torne efetiva regra.
Um dos instrumentos que viabilizam o controle concentrado são as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) e as arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs).
A ADI está prevista na Constituição (artigo 102) e é regulamentada pela lei 9.868/1999, sendo utilizada para questionar leis federais ou estaduais que violem a Constituição. Quanto às ADIs, o ministro relator pode designar a realização de audiência pública, no sentido de ouvir autoridades de renome no tema e experiência na matéria, bem como instituições relevantes quanto ao objeto da lide.
Já, a ADPF, regulamentada pela lei 9.882/1999, tem o objetivo de ser instrumento para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, seja União, estados, Distrito Federal e municípios, com destaque os atos anteriores à promulgação da Constituição de 1988. Nesse ponto, diferencia-se da ADI, que somente pode ser proposta contra lei com vigência posterior à promulgação da Constituição.
Há pedido para que o STF delibere sobre o artigo 14 da Lei da Arbitragem, que trata sobre o dever dos árbitros em revelar qualquer fato que denote dúvida justificada sobre sua imparcialidade e independência.
O partido União Brasil propôs uma ADPF sob o nº 1.050, tendo como objeto a questão da independência e imparcialidade dos árbitros das câmaras de arbitragem (a ADPF foi convertida pelo ministro relator em ADI, mesmo porque a lei de arbitragem entrou em vigor em 1996, logo posteriormente à promulgação da Constituição de 1988). Ademais, o rito da ADI, como visto, permite a realização de audiência pública, e o relator entendeu que a matéria tem relevância constitucional e “especial significado para a ordem social e a segurança jurídica”, de modo que seu rito se mostraria mais adequado, especialmente, quanto à abertura de debate com a comunidade arbitral.
Alguns litígios arbitrais específicos ganharam notoriedade no Brasil, em especial, pelas cifras bilionárias envolvidas e pelos reiterados pedidos de anulação de sentenças arbitrais por alegação de parcialidade e falta de independência de árbitros.
De todo modo, estudo feito pela professora Selma Ferreira Lemes, no final de 2022, demonstra que, na prática, é muito reduzido o número de impugnações de árbitro em relação ao volume absoluto de arbitragens no Brasil, e, ainda, é de apenas 0,6% o percentual de ações anulatórias acolhidas pelo Poder Judiciário. Logo, representa percentual insignificante. Isso só demonstra que, o sistema de indicações de árbitro é seguro e os agentes econômicos confiam nele.
Necessário deixar muito bem claro que, a ADPF 1.050, distribuída junto ao STF, no dia 22/03/2023, é apenas um braço do PL 3.293/21 no âmbito do Poder Judiciário.
Frise-se que, no dia 23/09/2021, foi apresentado o Projeto de Lei nº 3293/2021 para, dentre outros objetivos, alterar a lei nº 9.307/1996 (lei de arbitragem), no sentido de “aprimorar o dever de revelação” do árbitro.
E, sem ter havido qualquer debate com a comunidade jurídica e arbitral, no dia 06/07/2022, foi realizado requerimento de urgência, no sentido de que fosse realizada a sua apreciação imediata.
Houve uma comoção nacional fruto de tal pedido, e ele não foi acolhido, tendo passado a ocorrer indicações de profissionais notáveis na área para serem ouvidos em audiência pública. Logo, a alteração dos parâmetros atuais quanto ao dever de revelação não foi possível, de forma açodada, como pretendido.
Necessário lembrar que, o PL propõe que o árbitro tenha o dever de revelar qualquer fato que denote “dúvida mínima” quanto à sua imparcialidade e independência, sendo que hoje o termo empregado pela lei de arbitragem refere-se à “dúvida justificada”.
O dever de revelação do árbitro, previsto no artigo 14, §1º, da LA, é um dos pilares de transparência da arbitragem, de forma a permitir a imparcialidade e a independência exigidas considerando a relevância da função do árbitro. Tal dever está adstrito aos fatos cuja natureza possa afetar o julgamento do árbitro e gerar à parte a chamada “dúvida justificada” quanto à sua imparcialidade e independência. Ou seja, a revelação deve se restringir a fatos que, aos olhos da parte, possam importar a aparência de parcialidade quanto ao litígio posto a julgamento.
Destaque-se que, o inciso VIII, do artigo 32, da LA, autoriza a anulação da sentença arbitral no caso de dúvida quanto à parcialidade do árbitro. E, a “dúvida justificada” (artigo 14, §1º, da LA), requer que a parte aponte justificadamente o porquê da desconfiança, regra que está em consonância com as boas práticas internacionais e segue lei modelo da Uncitral.
Já, a “dúvida mínima”, levaria a uma interpretação pessoal, a um conceito subjetivo e incerto. Em verdade, qualquer elemento poderia ser utilizado para tentar anular procedimentos arbitrais.
Sempre é necessário frisar que, a arbitragem tem natureza jurídica de jurisdição privada e é pautada no basilar princípio da autonomia da vontade das partes, e, nesse cenário, o árbitro é escolhido pelas partes justamente porque tem a confiança delas.
A ADPF pretende sejam declarados que: 1) a não revelação, por si só, de fato que possa ensejar dúvida justificada, é causa de impedimento do árbitro que deixou de fazer a revelação; 2) a falta de independência e/ou parcialidade do árbitro é matéria de ordem pública e, como tal, não está sujeita à preclusão, podendo ser arguida a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, inclusive perante o Poder Judiciário; 3) as decisões judiciais proferidas nas instâncias inferiores que vão na contramão da interpretação constitucional que prevalecer violam aos preceitos fundamentais e devem ter seus efeitos imediatamente extirpados do mundo jurídico.
O não conhecimento da ADPF é caminho único, já que cabe ao Superior Tribunal de Justiça o papel de harmonizar a aplicação da legislação federal, no caso, o artigo 14, §1º, da LA.
Indiscutível que, a imparcialidade é elemento indissociável do devido processo legal, porém, a simples alegação de violação do devido processo legal, não é fundamento para que qualquer matéria seja levada ao STF, considerando que se estaria diante de oblíqua e reflexa eventual ofensa. Nesse sentido, o RE 629.080, julgado em 4/2/2014 e o RE 729884, julgado em 23/6/2016.
Ao se admitir o controle concentrado, se contraria o consolidado entendimento do próprio STF e a competência do STJ para uniformização de entendimento quanto à lei federal, STJ este que já se debruçou reiteradamente sobre essa matéria.
A prática arbitral internacionalmente reconhece as diretrizes sobre conflitos de interesses emitidas pela International Bar Association (IBA). Elas servem como referência às partes, aos árbitros, às câmaras quanto às condutas que poderiam justificar risco à independência ou à imparcialidade. Logo, os parâmetros estão delineados, havendo segurança jurídica mundial quanto ao tema.
Adicionalmente, se existirem fatos que possam, no olhar das partes, gerar dúvidas quanto à imparcialidade ou independência do árbitro, cumpre ao árbitro, obrigatoriamente, revelá-los às partes.
Além disso, quaisquer eventuais vícios podem depois ser alegados por ação anulatória, dirigida ao Poder Judiciário, proposta em face da sentença arbitral. E, dentre os fundamentos da ação anulatória, consta justamente a violação ao dever de imparcialidade. Logo, sempre houve e sempre haverá o controle pelo Poder Judiciário.
Destaque-se, porém, que, do mesmo modo que existe o dever de revelação por parte dos árbitros, existe também o dever das partes agirem sob o princípio da boa-fé objetiva.
Assim, se o fato revelado no momento da nomeação não motivou nenhuma objeção, não pode ele ser ensejador de uma ação anulatória pautada em imparcialidade, sob pena de violação do princípio da vedação ao comportamento contraditório. Ademais, se sequer há impugnação nas declarações finais e no pedido de esclarecimento, não há que seja falar em imparcialidade somente após a notificação quanto à sentença arbitral desfavorável.
O TJ-SP possuí reiterados julgados no sentido de que violar a boa-fé objetiva é pior do que a não realização do dever de revelação. Necessário, ainda, ressaltar que, não é a não revelação que gera nulidade, mas sim qual fato não foi revelado.
Nesse sentido, não se anula automaticamente a sentença arbitral em razão de qualquer eventual falha do dever de revelação. É necessária a análise sobre a efetiva qualidade do fato não revelado e a sua real relevância. Deve, deste modo, restar comprovado que o fato omitido impactou a imparcialidade ou independência.
Irrecusável que, o STF tem entendimento pacífico e consolidado de que mesmo as matérias de ordem pública, se não alegadas a tempo, sujeitam-se a preclusão. Nesse sentido: RE-AG. 24.837, DJ 22/05/2015 e ARE-ED 937.975, DJ 14/03/2016.
Como se verifica, a ADPF 1050 agride as legislações globais sobre arbitragem, viola o melhor direito pátrio, busca dar vida ao natimorto PL nº 3293/2021 e apresenta pedidos manifestamente impertinentes. É evidente que a sociedade tem condições de autorregulação e disposição sobre matérias de interesses essencialmente privados, condições esses que vêm sendo exercidos nos milhares de procedimentos arbitrais realizados anualmente, figurando, o Brasil, em lugar destaque no cenário mundial e a figurar em segundo lugar nas estatísticas de número de arbitragens, da Câmara de Comércio Internacional (CCI).
Portanto, todos esses fatos jurídicos, sejam projetos de lei descabidos, sejam ações judiciais de controle concentrado insubsistentes, geram insegurança jurídica, fazem com que ocorra a migração das arbitragens brasileiras para outros locais e causam graves prejuízos à economia nacional pela redução do investimento estrangeiro. A comunidade arbitral, mais uma vez, unida, preservará esse nobre instituto, infelizmente, em permanente e infundado ataque.
Por Gabriel de Britto Silva, advogado participante da comissão de arbitragem da OAB/RJ e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim) e coordenador do núcleo imobiliário da Cames.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2023, 13h22
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